segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A Identidade pessoal no Tratado da Natureza Humana / Hume

A Identidade pessoal no Tratado da Natureza Humana / Hume
Edivaldo Vieira Barros

Hume refuta inteiramente as noções correntes de identidade pessoal dada pelos filósofos de seu tempo, sobretudo aquelas fundamentadas em conceitos metafísicos abstrusos e forçados, afirmando-as incoerentes e até contraditórias.
Em seguida ele demonstra que tal idéia não pode ter qualquer fundamento legítimo, e para fazer essa negação utiliza-se dos dois princípios fundamentais de todo o seu Tratado: princípio da cópia – toda idéia provém de uma percepção e não há nada em nossa mente que não tenha essa origem; princípio da separação – toda idéia simples pode ser distinguível e separável de qualquer outra, não necessitando de qualquer conexão para existir.       
De acordo com o princípio da cópia, a idéia de um eu constante e ininterrupto necessitaria igualmente de uma percepção de mesma natureza que a originaria, e tal impressão, seguramente não existe. Atribuir identidade em seu sentido mais trivial a um ser que não cessa de mudanças nos leva invariavelmente a uma contradição.
A noção de uma unidade inquestionável de nosso eu apenas identifica o algo ao qual nossas diversas impressões e idéias se remetem, sem que esse tenha sua existência “real” garantida. Mas colocando na discussão o princípio da separação, essa idéia perde ainda mais seu caráter  necessário. Se todas as percepções particulares de fato são separáveis e distinguíveis entre si, restando delas em essência apenas sua existência isolada, qual a função de um eu que opere essa conexão, ou ainda mais, que se conecte a todas essas percepções? É simplesmente a constante sucessão de percepções em nossa mente que compõe a nossa existência, sendo as idéias de identidade,  eu ou substância uma mera ficção. Tudo não passa de percepções sucessivas, idéias que se formam a partir de impressões e que podem ser reduzidas em idéias simples que por sua vez são
distinguíveis e separáveis entre si, não necessitando de qualquer estrutura a priori, e não se relacionando efetivamente com qualquer evento a não ser segundo nossa tendência natural de aproximar percepções semelhantes, contíguas, ou percepções cujo hábito nos faz imaginá-las conectadas necessariamente (causa e efeito). Hume exemplifica isso lembrando que nos momentos em que tal sucessão deixa de ocorrer, como na morte ou no sono profundo, deixamos de existir (ainda que momentaneamente no caso do sono).
Sobre as condições pelas quais se realiza o fluxo constante de percepções em nossa mente nada podemos afirmar, bem como não podemos ter qualquer idéia de uma existência externa a nós ou além de nossa imaginação. Não havendo nos objetos qualquer conexão além daquela imposta pela nossa mente, não somos capazes de determinar qualquer ordem necessária em que devem aparecer, sendo que o palco do mundo apenas nos pode ser dado imediatamente, nunca de maneira antecipada.
Mas se Hume estiver certo e de fato a idéia de identidade não passar de uma ilusão criada pela mente, deve haver um motivo forte e determinante para tal criação, visto que essa se dá entre todos os homens, anunciando a existência de uma substância tanto para a identidade pessoal como para os demais objetos do mundo. Tanto os filósofos como os leigos adquirem essa ficção, seja no contato imediato com o mundo, seja através da investigação  deliberada sobre algo que possa unir as diversas percepções dando unidade aos diferentes objetos. O autor se dá conta dessa questão e propõe uma explicação para esse fenômeno que parece querer anular a descontinuidade percebida pelos nossos sentidos criando em nossas mentes um mundo fantasioso de substâncias e seres com existência ininterrupta. Ele ainda diferencia a identidade pessoal enquanto relativa às paixões e interesse em si mesmo (não analisada neste trabalho) e enquanto diz respeito ao pensamento e imaginação. 
Nessa parte positiva da explicação, Hume nos lembra dois conceitos fundamentais para prosseguirmos no texto: identidade e diversidade. Esses conceitos não são úteis se entendidos em seu sentido mais trivial, considerando os antônimos, em que não podem existir simultaneamente em um objeto. Dizer que uma coisa é igual a ela mesma e diferente das outras não nos leva a lugar algum. Mas sempre que utilizamos tais termos em nossos discursos, eles estão mutuamente relacionados, remetendo-se um ao outro e nunca existindo separadamente. O autor afirma que a diversidade presente na idéia de Identidade é uma suposta variação no tempo. Quando fixamos um objeto e não percebemos alteração de nenhuma espécie em sua estrutura, e ainda julgamos que houve uma variação no tempo (como se esta se desse de outra forma que não através da mudança nos objetos), então atribuímos uma Identidade a este objeto. Por outro lado, a identidade presente na idéia de Diversidade consiste numa estreita relação entre os objetos, que faz com que estes sejam percebidos de maneira “quase igual” por nossa mente. Partindo dessas definições, encontraremos o fundamento para a confusão de nossa mente que nos leva a atribuir Identidade no lugar de Diversidade. Não ocorre que raciocinamos (pelo menos a princípio) buscando saltar das percepções diversas para uma idéia de identidade nos seres, mas simplesmente essa relação estreita entre os objetos faz com que nossa mente os sinta da mesma maneira que sente objetos percebidos invariáveis devido à suposta variação no tempo.
Sendo assim, um erro inerente a nossa natureza, ainda que procuremos propositadamente enxergar a realidade do eterno fluxo em nossa mente, não conseguiremos, e logo seremos forçados a nos iludir novamente e criar fantasias sobre a identidade dos objetos. Acabamos então por  ceder ao determinismo da Identidade. 
Mas se uma simples tentativa de perceber a realidade nos confirma a diversidade das coisas, ainda que temporariamente,  como conviver com esse paradoxo entre sentir a diversidade e imaginar a identidade? Aqui está a origem de todas as formulações a respeito de substância, constância e identidade. Não suportamos muito bem conviver com isso, e então Hume identifica (mas não explica) três processos que nos levam a noções, sofisticadas ou não, de substância e identidade. O primeiro caso é o da reflexão deliberada, geralmente obra de filósofos, que busca fugir do paradoxo criando indevidamente tais conceitos para que possamos tranqüilamente conviver com essa tendência da mente em perceber identidade no lugar de diversidade. O segundo caso está no ambiente leigo, que não reflete deliberadamente sobre o assunto, mas a própria mente gera uma propensão a atribuir algo de inexplicável que permita enxergarmos a identidade de maneira a não enfrentarmos o paradoxo. E por último, quando nada disso ocorre, ainda confundimos a identidade com a diversidade, embora faltem as evidências em favor daquela.       
A partir de então, Hume busca provar que no fluxo incessante de percepções que nos chega a cada instante, apenas atribuímos identidade àqueles objetos compostos por partes conectadas pelas nossas relações mentais de semelhança, contigüidade ou causalidade, que são justamente as relações mentais responsáveis pela conexão que geralmente se julga existir entre os objetos no suposto mundo externo. A identidade nada mais é que a tendência da mente em aproximar objetos fortemente relacionados, e essa tendência já foi definida pelo autor como simplesmente uma força que busca aproximar em nossa imaginação as idéias simples mais adequadas para a formação de idéias complexas. Essa força não é de modo algum invencível ou absolutamente
necessária, ainda que seja a responsável pela semelhança com que os “...diversos povos organizam seus pensamentos e estruturam seus idiomas” (p. 34). 
Mas, em alguma medida, essas relações são também  as responsáveis pela noção de diversidade, pois são elas que fazem a conexão (relação estreita) entre os diferentes objetos. A idéia de Identidade  é novamente afirmada como sendo um mero erro devido às semelhantes formas da  mente em perceber a diversidade e aquilo que supomos ser a identidade.  O próximo passo argumentativo seria provar essa sucessão constante dos objetos que imaginamos serem idênticos. 
Hume expõe motivos que ultrapassam a possibilidade de um mero erro de linguagem na origem de todo esse problema filosófico. Ao criarmos uma espécie de ficção acerca das percepções sucessivas tornando-as um todo idêntico, atribuímos significado real ao que não passa de uma confusão do nosso entendimento. O símbolo vai além do simbolizado e é esse algo a mais que necessita ser identificado a fim de solucionarmos o problema. 
Se a Identidade é uma “propriedade perceptiva” da natureza humana, entender como objeto idêntico as percepções de objetos intimamente relacionados pela mente é uma conseqüência necessária. Mas se tudo que pode ser captado pelo homem são percepções sucessivas e não há efetivamente qualquer relação entre os objetos no mundo, podemos dizer antecipadamente que não pode haver seres idênticos, ou seja, não se faz necessário que busquemos exemplos, positivos ou negativos, que nos remetam à conclusão da inexistência de uma Identidade. Quaisquer impressões que nos cheguem aos sentidos poderão de antemão ser entendidas como diversas, visto que não há nenhum fundamento teórico (no sistema humeano) para uni-las efetivamente formando uma identidade. A semelhança entre a percepção de objetos estreitamente relacionados e a percepção de um objeto idêntico em uma suposta variação de tempo é a associação de idéias responsável pelo equívoco do nosso entendimento quando imaginamos identidade, e é demonstrando esse equívoco que poderá ser comprovado o erro no conceito de identidade pessoal.
Hume apresenta diversos casos sucessivos em que atribuímos identidade sem que haja um critério objetivo para isso. Parte da análise de casos de matéria inanimada, primeiramente sem a noção de estrutura e finalidade, depois analisa a identidade nesses casos para então chegar às plantas e animais.
Na análise de uma massa de matéria, argumenta que a adição ou a retirada de uma pequena parte não faz com que se perca a noção de identidade, e isso ocorre porque essa mudança é percebida de maneira suave por nossa mente. O problema é que se podemos mexer dessa forma na estrutura de um corpo sem, contudo, alterar sua identidade, qual deve ser o critério empregado para essa? Se uma mudança na própria essência do ser não é suficiente para sua dissolução, que fator objetivo poderá destruí-lo? Ocorre ainda que se a alteração fosse um pouco mais brusca, ainda que a quantidade de matéria retirada ou acrescida pouco variasse, teríamos uma destruição da identidade. Esses fenômenos, segundo Hume, são suficientes para nos demonstrar que tal critério para determinarmos  identidade repousa numa medida totalmente subjetiva e determinada pela nossa mente, pouco importando o que de fato ocorre com o objeto real. Assim, caso ocorra uma alteração considerável, mas percebida de forma gradual pela mente, esta continuará a atribuir Identidade. Essa identidade é denominada pelo autor como imperfeita, e só diz respeito ao progresso ininterrupto de nosso pensamento, visto que a permanência deste é suficiente para preservá-la. Desse modo, subjetiva, arbitrária e imperfeita, não é possível que a Identidade tenha lugar num sistema filosófico.
A Identidade também pode ser mantida por nossa mente ao longo de alterações sucessivas, caso possamos relacionar as  partes umas às outras, de modo que permaneça um fim comum para o objeto. Este “artifício” permitirá uma “transição fácil do pensamento”.
Mais um passo e Hume explica como se dá a formação da Identidade para plantas e animais, seres que se modificam durante toda a vida sem que deixemos de atribuir-lhes uma forte idéia de identidade. Basta acrescentar ao caso anterior, uma simpatia entre as partes causada por relações de causa e efeito, causando uma mútua relação entre as mesmas, o que facilitará ainda mais a transição do pensamento.  
De maneira semelhante se forma a Identidade Pessoal, mas Hume propõe outro argumento: a Identidade, seja lá o que for, não pode destruir o Princípio da
Separação, sendo que ela apenas vincula nossas diferentes percepções na mente. A identidade não passa de uma qualidade formada pela imaginação devido ao fluxo constante de nossas percepções. As relações imaginárias de semelhança, contigüidade e causalidade acabam por produzir a idéia de Identidade, ao propiciarem o progresso ininterrupto do pensamento. Como não há nada no mundo que mantenha uma conexão real entre os objetos senão as nossas relações mentais de semelhança, contigüidade e causalidade, não são outras as fontes da noção de existência sucessiva e invariável que temos de uma pessoa. Porém nesse caso a contigüidade não terá grande influência, e Hume analisa como a semelhança e a causalidade contribuem para tal noção.
No caso da semelhança, podemos concluir que a memória, ao trazer à nossa mente as imagens de percepções passadas, porém semelhantes à percepção atual de um mesmo objeto, nos fortalece a idéia de invariabilidade e continuidade no tempo. “Quanto à causalidade, podemos observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de causa e efeito,...(p. 293)” de modo que estas relações estão em constante troca e movimento, sem alterar a identidade, assim como em uma cidade as relações de seus habitantes entre si e suas migrações não alteram a essência do lugar.
Hume atribui à memória o fato de concebermos continuidade e extensão nessa sucessão de percepções e, conseqüentemente a memória é a responsável pela formação das relações de causa e efeito. Assim, finalmente, é essa faculdade da mente humana que nos revela (mas não produz por  si mesma) aquilo que denominamos eu ou pessoa.
O autor considera por fim que as discussões acerca da identidade pessoal têm um caráter antes gramatical que filosófico, pois diferenças quantitativas num objeto são suficientes para alterar a Identidade filosófica, ou seja, rigorosamente falando podemos perceber que a mais leve alteração  em um corpo deveria ser capaz de lhe tornar diferente; mas no plano verbal há um construto qualitativo que norteia tal noção, pois só sinalizamos uma mudança quando deixa de haver uma transição fácil das percepções em nossa mente. O critério para se atribuir Identidade a um objeto qualquer é inteiramente subjetivo.  

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