A Identidade pessoal no Tratado da Natureza
Humana / Hume
Edivaldo Vieira Barros
Hume refuta inteiramente as noções correntes
de identidade pessoal dada pelos filósofos de seu tempo, sobretudo aquelas
fundamentadas em conceitos metafísicos abstrusos e forçados, afirmando-as
incoerentes e até contraditórias.
Em seguida ele demonstra que tal idéia não pode ter qualquer fundamento
legítimo, e para fazer essa negação utiliza-se dos dois princípios fundamentais
de todo o seu Tratado: princípio da cópia – toda idéia provém de uma percepção
e não há nada em nossa mente que não tenha essa origem; princípio da separação –
toda idéia simples pode ser distinguível e separável de qualquer outra, não
necessitando de qualquer conexão para existir.
De acordo com o princípio da cópia, a idéia
de um eu constante e ininterrupto necessitaria igualmente de uma percepção de
mesma natureza que a originaria, e tal impressão, seguramente não existe.
Atribuir identidade em seu sentido mais trivial a um ser que não cessa de
mudanças nos leva invariavelmente a uma contradição.
A noção de uma unidade inquestionável de
nosso eu apenas identifica o algo ao qual nossas diversas impressões e idéias
se remetem, sem que esse tenha sua existência “real” garantida. Mas colocando
na discussão o princípio da separação, essa idéia perde ainda mais seu caráter necessário. Se todas as percepções
particulares de fato são separáveis e distinguíveis entre si, restando delas em
essência apenas sua existência isolada, qual a função de um eu que opere essa
conexão, ou ainda mais, que se conecte a todas essas percepções? É simplesmente
a constante sucessão de percepções em nossa mente que compõe a nossa
existência, sendo as idéias de identidade,
eu ou substância uma mera ficção. Tudo não passa de percepções
sucessivas, idéias que se formam a partir de impressões e que podem ser reduzidas
em idéias simples que por sua vez são
distinguíveis e separáveis entre si, não necessitando de qualquer
estrutura a priori, e não se relacionando efetivamente com qualquer evento a
não ser segundo nossa tendência natural de aproximar percepções semelhantes,
contíguas, ou percepções cujo hábito nos faz imaginá-las conectadas
necessariamente (causa e efeito). Hume exemplifica isso lembrando que nos
momentos em que tal sucessão deixa de ocorrer, como na morte ou no sono
profundo, deixamos de existir (ainda que momentaneamente no caso do sono).
Sobre as condições pelas quais se realiza o
fluxo constante de percepções em nossa mente nada podemos afirmar, bem como não
podemos ter qualquer idéia de uma existência externa a nós ou além de nossa
imaginação. Não havendo nos objetos qualquer conexão além daquela imposta pela
nossa mente, não somos capazes de determinar qualquer ordem necessária em que
devem aparecer, sendo que o palco do mundo apenas nos pode ser dado
imediatamente, nunca de maneira antecipada.
Mas se Hume estiver certo e de fato a idéia
de identidade não passar de uma ilusão criada pela mente, deve haver um motivo
forte e determinante para tal criação, visto que essa se dá entre todos os
homens, anunciando a existência de uma substância tanto para a identidade
pessoal como para os demais objetos do mundo. Tanto os filósofos como os leigos
adquirem essa ficção, seja no contato imediato com o mundo, seja através da
investigação deliberada sobre algo que possa
unir as diversas percepções dando unidade aos diferentes objetos. O autor se dá
conta dessa questão e propõe uma explicação para esse fenômeno que parece
querer anular a descontinuidade percebida pelos nossos sentidos criando em
nossas mentes um mundo fantasioso de substâncias e seres com existência
ininterrupta. Ele ainda diferencia a identidade pessoal enquanto relativa às
paixões e interesse em si mesmo (não analisada neste trabalho) e enquanto diz
respeito ao pensamento e imaginação.
Nessa parte positiva da explicação, Hume nos
lembra dois conceitos fundamentais para prosseguirmos no texto: identidade e
diversidade. Esses conceitos não são úteis se entendidos em seu sentido mais
trivial, considerando os antônimos, em que não podem existir simultaneamente em
um objeto. Dizer que uma coisa é igual a ela mesma e diferente das outras não
nos leva a lugar algum. Mas sempre que utilizamos tais termos em nossos
discursos, eles estão mutuamente relacionados, remetendo-se um ao outro e nunca
existindo separadamente. O autor afirma que a diversidade presente na idéia de
Identidade é uma suposta variação no tempo. Quando fixamos um objeto e não
percebemos alteração de nenhuma espécie em sua estrutura, e ainda julgamos que
houve uma variação no tempo (como se esta se desse de outra forma que não através
da mudança nos objetos), então atribuímos uma Identidade a este objeto. Por
outro lado, a identidade presente na idéia de Diversidade consiste numa
estreita relação entre os objetos, que faz com que estes sejam percebidos de
maneira “quase igual” por nossa mente. Partindo dessas definições,
encontraremos o fundamento para a confusão de nossa mente que nos leva a
atribuir Identidade no lugar de Diversidade. Não ocorre que raciocinamos (pelo
menos a princípio) buscando saltar das percepções diversas para uma idéia de
identidade nos seres, mas simplesmente essa relação estreita entre os objetos
faz com que nossa mente os sinta da mesma maneira que sente objetos percebidos
invariáveis devido à suposta variação no tempo.
Sendo assim, um erro inerente a nossa
natureza, ainda que procuremos propositadamente enxergar a realidade do eterno
fluxo em nossa mente, não conseguiremos, e logo seremos forçados a nos iludir
novamente e criar fantasias sobre a identidade dos objetos. Acabamos então
por ceder ao determinismo da
Identidade.
Mas se uma simples tentativa de perceber a
realidade nos confirma a diversidade das coisas, ainda que
temporariamente, como conviver com esse
paradoxo entre sentir a diversidade e imaginar a identidade? Aqui está a origem
de todas as formulações a respeito de substância, constância e identidade. Não
suportamos muito bem conviver com isso, e então Hume identifica (mas não
explica) três processos que nos levam a noções, sofisticadas ou não, de
substância e identidade. O primeiro caso é o da reflexão deliberada, geralmente
obra de filósofos, que busca fugir do paradoxo criando indevidamente tais
conceitos para que possamos tranqüilamente conviver com essa tendência da mente
em perceber identidade no lugar de diversidade. O segundo caso está no ambiente
leigo, que não reflete deliberadamente sobre o assunto, mas a própria mente
gera uma propensão a atribuir algo de inexplicável que permita enxergarmos a
identidade de maneira a não enfrentarmos o paradoxo. E por último, quando nada
disso ocorre, ainda confundimos a identidade com a diversidade, embora faltem
as evidências em favor daquela.
A partir de então, Hume busca provar que no
fluxo incessante de percepções que nos chega a cada instante, apenas atribuímos
identidade àqueles objetos compostos por partes conectadas pelas nossas
relações mentais de semelhança, contigüidade ou causalidade, que são justamente
as relações mentais responsáveis pela conexão que geralmente se julga existir
entre os objetos no suposto mundo externo. A identidade nada mais é que a
tendência da mente em aproximar objetos fortemente relacionados, e essa
tendência já foi definida pelo autor como simplesmente uma força que busca
aproximar em nossa imaginação as idéias simples mais adequadas para a formação
de idéias complexas. Essa força não é de modo algum invencível ou absolutamente
necessária, ainda que seja a responsável pela semelhança com que os
“...diversos povos organizam seus pensamentos e estruturam seus idiomas” (p.
34).
Mas, em alguma medida, essas relações são
também as responsáveis pela noção de
diversidade, pois são elas que fazem a conexão (relação estreita) entre os
diferentes objetos. A idéia de Identidade
é novamente afirmada como sendo um mero erro devido às semelhantes
formas da mente em perceber a
diversidade e aquilo que supomos ser a identidade. O próximo passo argumentativo seria provar
essa sucessão constante dos objetos que imaginamos serem idênticos.
Hume expõe motivos que ultrapassam a
possibilidade de um mero erro de linguagem na origem de todo esse problema
filosófico. Ao criarmos uma espécie de ficção acerca das percepções sucessivas
tornando-as um todo idêntico, atribuímos significado real ao que não passa de
uma confusão do nosso entendimento. O símbolo vai além do simbolizado e é esse
algo a mais que necessita ser identificado a fim de solucionarmos o
problema.
Se a Identidade é uma “propriedade
perceptiva” da natureza humana, entender como objeto idêntico as percepções de
objetos intimamente relacionados pela mente é uma conseqüência necessária. Mas
se tudo que pode ser captado pelo homem são percepções sucessivas e não há
efetivamente qualquer relação entre os objetos no mundo, podemos dizer
antecipadamente que não pode haver seres idênticos, ou seja, não se faz necessário
que busquemos exemplos, positivos ou negativos, que nos remetam à conclusão da
inexistência de uma Identidade. Quaisquer impressões que nos cheguem aos
sentidos poderão de antemão ser entendidas como diversas, visto que não há
nenhum fundamento teórico (no sistema humeano) para uni-las efetivamente
formando uma identidade. A semelhança entre a percepção de objetos
estreitamente relacionados e a percepção de um objeto idêntico em uma suposta
variação de tempo é a associação de idéias responsável pelo equívoco do nosso
entendimento quando imaginamos identidade, e é demonstrando esse equívoco que
poderá ser comprovado o erro no conceito de identidade pessoal.
Hume apresenta diversos casos sucessivos em
que atribuímos identidade sem que haja um critério objetivo para isso. Parte da
análise de casos de matéria inanimada, primeiramente sem a noção de estrutura e
finalidade, depois analisa a identidade nesses casos para então chegar às
plantas e animais.
Na análise de uma massa de matéria, argumenta
que a adição ou a retirada de uma pequena parte não faz com que se perca a
noção de identidade, e isso ocorre porque essa mudança é percebida de maneira
suave por nossa mente. O problema é que se podemos mexer dessa forma na
estrutura de um corpo sem, contudo, alterar sua identidade, qual deve ser o
critério empregado para essa? Se uma mudança na própria essência do ser não é
suficiente para sua dissolução, que fator objetivo poderá destruí-lo? Ocorre
ainda que se a alteração fosse um pouco mais brusca, ainda que a quantidade de
matéria retirada ou acrescida pouco variasse, teríamos uma destruição da
identidade. Esses fenômenos, segundo Hume, são suficientes para nos demonstrar
que tal critério para determinarmos
identidade repousa numa medida totalmente subjetiva e determinada pela
nossa mente, pouco importando o que de fato ocorre com o objeto real. Assim,
caso ocorra uma alteração considerável, mas percebida de forma gradual pela
mente, esta continuará a atribuir Identidade. Essa identidade é denominada pelo
autor como imperfeita, e só diz respeito ao progresso ininterrupto de nosso pensamento,
visto que a permanência deste é suficiente para preservá-la. Desse modo,
subjetiva, arbitrária e imperfeita, não é possível que a Identidade tenha lugar
num sistema filosófico.
A Identidade também pode ser mantida por
nossa mente ao longo de alterações sucessivas, caso possamos relacionar as partes umas às outras, de modo que permaneça
um fim comum para o objeto. Este “artifício” permitirá uma “transição fácil do
pensamento”.
Mais um passo e Hume explica como se dá a
formação da Identidade para plantas e animais, seres que se modificam durante
toda a vida sem que deixemos de atribuir-lhes uma forte idéia de identidade.
Basta acrescentar ao caso anterior, uma simpatia entre as partes causada por
relações de causa e efeito, causando uma mútua relação entre as mesmas, o que
facilitará ainda mais a transição do pensamento.
De maneira semelhante se forma a Identidade
Pessoal, mas Hume propõe outro argumento: a Identidade, seja lá o que for, não
pode destruir o Princípio da
Separação, sendo que ela apenas vincula nossas diferentes percepções na
mente. A identidade não passa de uma qualidade formada pela imaginação devido
ao fluxo constante de nossas percepções. As relações imaginárias de semelhança,
contigüidade e causalidade acabam por produzir a idéia de Identidade, ao
propiciarem o progresso ininterrupto do pensamento. Como não há nada no mundo
que mantenha uma conexão real entre os objetos senão as nossas relações mentais
de semelhança, contigüidade e causalidade, não são outras as fontes da noção de
existência sucessiva e invariável que temos de uma pessoa. Porém nesse caso a
contigüidade não terá grande influência, e Hume analisa como a semelhança e a
causalidade contribuem para tal noção.
No caso da semelhança, podemos concluir que a
memória, ao trazer à nossa mente as imagens de percepções passadas, porém
semelhantes à percepção atual de um mesmo objeto, nos fortalece a idéia de
invariabilidade e continuidade no tempo. “Quanto à causalidade, podemos
observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de um sistema de
diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de
causa e efeito,...(p. 293)” de modo que estas relações estão em constante troca
e movimento, sem alterar a identidade, assim como em uma cidade as relações de
seus habitantes entre si e suas migrações não alteram a essência do lugar.
Hume atribui à memória o fato de concebermos
continuidade e extensão nessa sucessão de percepções e, conseqüentemente a
memória é a responsável pela formação das relações de causa e efeito. Assim,
finalmente, é essa faculdade da mente humana que nos revela (mas não produz
por si mesma) aquilo que denominamos eu
ou pessoa.
O autor considera por
fim que as discussões acerca da identidade pessoal têm um caráter antes
gramatical que filosófico, pois diferenças quantitativas num objeto são
suficientes para alterar a Identidade filosófica, ou seja, rigorosamente
falando podemos perceber que a mais leve alteração em um corpo deveria ser capaz de lhe tornar
diferente; mas no plano verbal há um construto qualitativo que norteia tal
noção, pois só sinalizamos uma mudança quando deixa de haver uma transição
fácil das percepções em nossa mente. O critério para se atribuir Identidade a
um objeto qualquer é inteiramente subjetivo.